Virou, mexeu, sujidade
João Antônio, o mais carioca dos paulistas, nas calçadas de Copacabana.
Locked Groove é o último sulco do vinil, quando a agulha para no final de um dos lados. Não tem tradução boa para o português - ranhura bloqueada é técnica e sem graça demais.
É aquele momento em que as conversas avançam enquanto o disco está rodando, sem música alguma. Ao mesmo tempo em que busca outro disco dentro da capa ou vai trocar o lado, você continua uma história, ou começa qualquer assunto que valha a pena: drinques, viagens, livros, música, o que for.O que fizer sentido na hora.
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Na semana passada, aproveitei a polêmica do publicitário aposentado que vive em Londres e que não aprendeu nada e não esqueceu nada. Privilégios a gritar nos desertos da América. Foi divertido, mas também foi uma exceção: enveredar por esse caminho de reagir a cada bizarrice que acontece diariamente no Brasil é perigoso - não vai ter newsletter que chegue.
Por isso, quero retomar aqui um dos objetivos a que me propus: falar de algo que ninguém está falando e abrir uma alternativa a essa bad trip em que estamos há anos. No fundo, oferecer uns 15 minutos de leitura que nos deixem pensar em outras coisas que não a realidade do Brasil facho-teocrático desses anos 2020. Militância e gritaria sempre vai ter; mas quanto mais pudermos ter espaços em que essa gente não entre, melhor para a sanidade mental de todos.
Essa semana, um texto sobre um dos escritores que mais gosto e como ele permanece atual, mesmo mais de um quarto de século depois da sua morte. Lembrei dele na semana passada, ao comentar sobre gente que vive fora da realidade.
Boa leitura, até mais. 😉
Intro.
Quatro da tarde e a Adega Pérola, em Copacabana, está na baixa de movimento - bom horário para chegar, pegar uma boa mesa na calçada e já pensar no que pedir da estufa que ocupa toda a extensão do bar.
Conseguimos boa mesa, o sol já se escondendo por trás dos morros que isolam Copacabana dos bairros mais antigos da cidade. Pela calçada, gente indo e voltando, crianças saindo de alguma escola que é ali perto, taxistas com carros amarelos estacionados no canteiro central da larga rua Siqueira Campos e aquele ritual de empurrar o carro desligado em ponto morto, sem freio de mão, para ocupar o primeiro lugar do ponto, quando o colega sai. Do outro lado da rua, várias lojas de comércio de bairro: armarinhos, materiais de construção, acessórios para celular, lotérica. Um outro bar, uma premonição de que estaremos sentados ao balcão várias horas depois, já na madrugada.
À nossa frente, acima do bar, um prédio gigantesco ocupa praticamente todo o quarteirão. Lojas no térreo e centenas de janelas que progressivamente iluminam-se com o cair da tarde; é o retrato mais bem-acabado do que João Antônio chamava de “a civilização do quarto-e-sala".
João quem?
O melhor escritor brasileiro de quem menos se fala. O cara para quem inventaram o neologismo ‘conto-reportagem', um gêmeo tropical do New Journalism que gente mais bem afortunada do que o nosso cronista - Gay Talese, Joan Didion, Tom Wolfe - fazia mais ou menos na mesma época.
E ganhavam bem para isso, ao contrário de João Antônio.
E que teve o mais desafortunado career move, ever:
Morreu.
Antes do tempo.
Foi embora jovem, em 1996. Antes de completar 60 anos.
Paulista de Presidente Altino, em Osasco, nos arredores de São Paulo, mergulhou em Copacabana depois de largar tudo para trás - carreira no jornalismo, carro, salário fixo - para se dedicar à literatura em tempo integral, vivendo profundamente o bairro mais noturno, zoado e famoso do Rio de Janeiro.
Aquele mesmo que João contava que nunca havia visto um gringo que soubesse pronunciar corretamente o nome da vizinhança. O mesmo bairro que a música de Alberto Ribeiro e Braguinha chamava de Princesinha do Mar:
"Copacabana, o mar, eterno cantor,
Ao te beijar ficou perdido de amor
E hoje vive a murmurar:
Só a ti, Copacabana, eu hei de amar"-Copacabana, Alberto Ribeiro e Braguinha, 1944
1.
João Antônio, o cronista-jornalista, nasceu em 1937 e recebeu o mesmo nome do pai.
A família, emigrada de Portugal em 1913, foi parar em Presidente Altino porque o avô queria morar perto de conterrâneos que se apinhavam nessa região.
O pai de João Antônio (os dois compartilhavam o nome) trabalhou como cobrador e garçom durante a juventude.Violonista e compositor diletante, chegou a tocar com Garoto. Por sua vez, a mãe do cronista-jornalista, Irene, vinha de Vassouras, no vale do Paraíba fluminense. Parte da família dela morava no Rio, o que facilitava as constantes visitas de João pai aos grandes sambistas e chorões que conhecia na cidade. Levou o filho junto algumas vezes.
Talvez sejam esses primeiros contatos com o Rio, ainda criança, que levaram João Antônio Filho a aceitar o convite do Jornal do Brasil em 1966 e se mudar para a ex-capital federal.
João Antônio ficou conhecido no meio literário com sua novela Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963, que contava a história de 3 amigos dos bairros operários de São Paulo entre bebedeiras, sinuca, madrugadas sem fim e pequenas contravenções do dia a dia. Revolucionou a linguagem: falava-se, no seu livro, a linguagem das ruas, as gírias, o ritmo da oralidade.
O sucesso para o operário das letras (que tivera um aprendizado duro nas ruas de São Paulo) veio depois de muito esforço para ser publicado e de trabalhar incessantemente em uma agência de publicidade, para pagar as contas. O convite do Jornal do Brasil permitiria duas coisas: fugir da publicidade e, de quebra, de São Paulo.
Esse primeiro período no Rio o levou a conhecer a futura mulher, Marília, jornalista e engajada politicamente. Foi nessa época que nasceu o único filho. Mas os boletos aumentavam, e a nova família voltou a São Paulo por um breve intervalo. A carga de trabalho de João Antônio aumentou - contribuía com revistas como Manchete, Claudia, Bondinho (patrocinada pelo Pão de Açúcar; novamente a publicidade ajudando a fechar as contas). Escrevia também uma coluna no Última Hora.
Em 1969, voltaram ao Rio. João Antônio encontrou o apartamento de cobertura, no 15A da Praça Sezerdêlo Correia, a poucas quadras de onde fica a Adega Pérola - e que ele, que curtia os bares tradicionais, dizia ser uma das inovações desnecessárias no bairro. A Praça dos Paraíbas ou Praça dos Paus-de-arara, como era apelidada, foi onipresente em seus escritos. Chamava-a de "o coração de Copacabana".
Do mirante privilegiado, João Antônio via toda a movimentação da praça e das ruas embaixo, com as barracas informais sendo montadas e desmontadas incessantemente, os ambulantes, vendedores, mascates; trabalhadores indo e vindo - muitos deles “pingentes” que pegavam trem nos subúrbios na madrugada; os moradores do bairro, velhinhos aposentados, adolescentes, alunos indo e voltando de escolas; desocupados, pedintes, estrangeiros vagabundeando; agiotas, cafetões, bicheiros, pequenos traficantes, prostitutas. Milhares de histórias que se cruzavam.
Não demorou para que ele descesse ao asfalto.
2.
Seu estilo, que mereceu nome próprio, refinou-se na revista Realidade, da qual fez parte até 1969. Suas reportagens dessa época foram republicadas depois em livros próprios e evidenciavam a mistura de técnicas de ficção com o trabalho de apuração jornalística. Anos depois, a ex-mulher Marília falava que o período em que João trabalhou na revista foi a época em que o viu mais feliz.
Em 1973, o casamento estava terminado. Depois de deixar a redação da Realidade, insatisfeito com o fato de estar preso a um emprego regular, sem tempo para escrever livremente e com a sombra da censura pairando constantemente sobre a revista, João Antônio passou a ter uma rotina errática - inúmeros frilas sem regularidade, feitos apenas para pagar as contas, ao mesmo tempo em que a boêmia e as bebedeiras homéricas o deixavam fora de casa por dias a fio. Depois de um tempo, Marília foi para a França com o filho do casal e João Antônio ficou sozinho na cobertura da Sezerdêlo Correia. Bem no coração de sua musa, Copacabana.
A Copacabana de João Antônio foi reunida em um livro de 1978, Ô, Copacabana!. Nele, o cronista da realidade examina com coerência ímpar, em textos publicados em diferentes veículos e épocas, o bairro que se transformou em sua residência definitiva. É um um microcosmo do Rio de Janeiro e do Brasil: João Antônio passa por tudo - os tipos que encontra pelas ruas, o poder público ausente e corrupto, violência policial, falta de perspectiva, especulação imobiliária, os pequenos estratagemas e golpes do dia a dia para sobreviver.
O olhar de João Antônio vai além da superfície. A galeria Alaska, reduto gay de Copacabana, fascina o escritor não apenas pela balada que avança madrugada adentro, mas também pelos trabalhadores que chegam cedo e trabalham duro em salões de cabeleireiro, bares e lojas; o calçadão e as ruas sempre descritos em detalhes e na linguagem safa da rua. Gente real que ele encontra acaba virando personagem, como Mariazinha Tiro a Esmo, personagem em um conto anterior, que revela-se como uma menina que João Antônio encontrou em Copa na vida real.
O olhar nostálgico de João Antônio encontrou em Copacabana o mesmo cenário do qual fugia. Odiava uma São Paulo que não existia mais e que era destruída pela especulação imobiliária, por donos do poder implacáveis e pelo provincianismo de uma classe média obcecada por dinheiro. A exemplo da São Paulo que não mais reconhecia, viu as mesmas mudanças ocorrerem em Copa e no Rio de Janeiro. Sentia-se deslocado, mesmo no bairro que considerava sua casa e do qual conhecia cada palmo.
3.
Sempre endividado, João Antônio pulava de trabalho em trabalho, mas fazia o máximo para evitar que tivesse de voltar a uma redação ou, pior, à publicidade. Não aceitava estar preso novamente a uma rotina extenuante, sem espaço para escrever. Ao mesmo tempo, não conseguia viver apenas dos livros.
Sentia-se sempre impulsionado a escrever sobre os tipos que vivem nas franjas da sociedade, que não têm voz, que são invisíveis no dia a dia. Pensava que não poderia retratar com fidelidade as pessoas que povoavam suas histórias se não vivesse no mesmo mundo que elas. Era como se tivesse uma obrigação para com esses rejeitados: quem escreveria suas histórias, se ele desistisse?
As histórias que João Antônio conta são marcadas pelo que acontece nas entrelinhas, por tudo o que é deixado de fora, por aquilo que fica subentendido. É o não-dito que dá o contexto em muitas das histórias, que define os personagens de quem ele fala. É sutil e, ao mesmo tempo, não deixa dúvidas de o que está sendo narrado. Como se mostrasse o lado B da sociedade, escondido e proibidão.
Um proverbial herdeiro de algum publicitário bem-sucedido poderia passar pelas ruas de Copacabana e notar somente um cenário que lhe é permitido ver, somente a superfície; já a escrita de João Antônio desnuda o que está por trás, o que está escondido, o que não está dito. João revela as histórias que não são aparentes e óbvias. O ex-publicitário que abraçou a literatura, ao contrário do pai do herdeiro turista em seu próprio país, enxerga o mundo sem firulas e com vontade de compreendê-lo; torna protagonistas os personagens que vivem nas frestas, que existem discretamente em uma galeria escura semelhante a qualquer outra do bairro ou em um quarto-e-sala anônimo, em meio a centenas de milhares de apartamentos iguais.
João Antônio fala dos esquecidos, dos que são deixados para trás. Não por acaso, sua prosa é nostálgica - fala de um mundo que está deixando de existir aos poucos e de pessoas que vivem nele por não terem acesso ao novo mundo, esse que substitui o antigo. Fala daqueles que vão sendo apagados pela sociedade por conveniência e pela força do dinheiro.
Ironicamente, João Antônio tornou-se, ele mesmo, parte do mundo de histórias de Copacabana. E, a exemplo daqueles que retratava, o apagamento em vida começou também para o autor marginal.
Um a um, seus livros foram saindo de catálogo. Sentia que era um desconhecido autor do passado, anacrônico. Nos anos 1990, os seus livros só podiam ser encontrados em sebos. Retraiu-se cada vez mais, circulava apenas por Copacabana. As saídas eram cada vez mais infrequentes e vizinhos e porteiros não se espantavam se ele não deixasse a cobertura por dias e dias.
Seu corpo foi encontrado na cama, 15 dias depois daquela que a perícia determinou como sendo a data da morte.
4.
João Antônio viveu e morreu como os personagens que povoavam suas histórias. Revoltava-se com a extrema sacanagem que sempre caía em cima de quem já estava acostumado a se dar mal, denunciava injustiças, era nostálgico de uma São Paulo ou de um Rio que se apagava - mas não era pessimista ou depressivo. Suas histórias têm um respeito profundo pelas pessoas de quem fala; ri com elas, diverte-se e, ao mesmo tempo, ri dos donos do poder e suas armações. Ironiza a classe média conservadora e provinciana, critica o progresso a todo custo, essa sanha "modernizante" do Brasil que, João Antônio percebeu há muito tempo, só existe para deixar tudo como sempre foi. Desconfiado de toda figura de autoridade e de todo marginal, mas sempre solidário com o trabalhador que se vira para sobreviver.
Nunca se declarou politicamente. Talvez porque sua obra fale por si.
Enquanto a noite avançava em Copacabana e de bar em bar víamos a madrugada chegando, lembrei das histórias que João Antônio contava bem. Sorri ao imaginar o que acharia desse período escroto que vivemos nos últimos anos. Teria material de sobra.
Talvez falasse com mais contundência, denunciasse mais; ao final, seria o mesmo de sempre, expondo as contradições do Brasilzão velho de guerra de sempre - para usar uma frase que gosto, de outro grande cronista das quebradas paulistanas. Talvez também falasse sozinho, sem encontrar reverberação alguma. O solitário que era, falando de um mundo que estava acabando.
Morreu sozinho, como protagonistas de muitas das histórias que contava.
Mas sua obra voltou a ser republicada e as histórias esquecidas são lidas novamente. Paradoxalmente, são tão atuais quanto antes. Talvez seja um bom resumo do que é o Brasil: um eterno locked groove em que continua-se a fazer tudo igual, com o objetivo cinicamente explícito de se obter os mesmos resultados.
"Nós não estamos nem aí. Estamos podres e não queremos nem saber quem envernizou a asa da barata”
João Antônio, Ô, Copacabana!, 1978
João Antônio sempre esteve em minha estante desde que encontrei seus livros republicados, no começo dos anos 2000. Muitos anos antes, eu havia lido um conto dele na coleção ‘Para gostar de ler', que era onipresente na 5ª série e não sei se ainda existe - compilava grandes autores do conto e da crônica no Brasil, boa forma de fazer alguns moleques bestas dessa idade se interessarem por algo mais do que futebol ou revista de mulher pelada. Grande escritor, tem sido redescoberto nas últimas décadas. Rodrigo Lacerda, escritor e editor na Cosac Naify nos anos 2000, tem muito mérito nisso. Muitas das informações daqui peguei da tese de doutorado dele na FFLCH, chamada João Antônio: uma biografia literária. Para quem quiser buscar mais coisas de João Antônio, hoje em dia tem disponível facilmente uma nova edição de Malagueta, Perus e Bacanaço e, também, alguns contos reunidos em um volume novo. Sempre dê preferência para livrarias independentes, João Antônio agradeceria.
Já Ô, Copacabana! só se encontra em sebos. Espero que não suma de novo, depois de anos de ostracismo fora do catálogo.