Se ainda não assina, clique no botão abaixo para receber um texto novo toda semana. Se já é assinante, você pode mudar para a modalidade paga.
1.
Sempre saímos pela rua logo cedo - se estivermos em condições, se o tempo ajudar, se a cama não nos segurar. Nós nos rendemos a essas atividades que quase todo mundo faz depois de uma certa idade: corremos alguns quilômetros pela manhã. Depende do dia, claro: se estivermos em condições, se o tempo ajudar yadda yadda yadda.
Moramos num dos quarteirões mais movimentados de Pinheiros, em São Paulo, mas nesse horário os restaurantes e bares ainda estão fechados. Passamos por uma sequência de casas fechadas por tapumes, que darão lugar a um novo lançamento imobiliário. Chegamos até a esquina com a avenida Rebouças. Do outro lado da rua, um posto de gasolina que existia há décadas também está fechado e deve vir abaixo em breve. Aguardamos o sinal, que está vermelho para pedestres. Olho para onde existia antes um prédio, que estava lá desde os anos 1960. Era de cinco ou seis andares (depois que vai para o chão, você não consegue mais lembrar dos detalhes). O terreno agora faz parte do mesmo empreendimento que irá derrubar as demais casas da quadra. A avenida Rebouças logo será um Canyon constituído por prédios altos que descem da Avenida Paulista até a Faria Lima e além. Na cidade que não para de crescer, mais adensamento sem bom senso.
O Plano Diretor de 2014 pode ser considerado o marco inicial dessa mais recente guerra que incorporadoras e construtoras travam contra a cidade de São Paulo. O prefeito de então e proponente do Plano, Fernando Haddad, mostrou-se um bom dedilhador de Beatles no violão e um péssimo futurólogo: nessa matéria aqui, da própria Câmara Municipal, ele falava como o Plano Diretor proposto iria “combater a especulação imobiliária”. Parece um pouco de ingenuidade ou boa vontade extrema achar que um plano aprovado por 53 dos 55 vereadores seria tão virtuoso assim.
Hoje Haddad toca Bye, Bye Blackbird em outras esferas e os prefeitos que vieram depois só aprofundaram a lambança feita pelo Plano Diretor de 2014 - pela ordem, João “O breve" Dória, Bruno “Bernie Lomax” Covas e…quem mesmo? Ah, um zé-ruela aí que ninguém sabe o nome (mas que é favorito à reeleição. Obrigado, paulistrouxas de sempre).
A especulação imobiliária entrou como se fossem as FDI em Rafah e arrasou quarteirões inteiros pela cidade. Em muitos terrenos já subiram arranha-céus cheios de apartamentos e vazios de moradores, ou com estúdios destinados para AirBnB. E, ainda, apartamentos descolados, em um bairro bem-localizado, para herdeiros que vêm estudar em São Paulo.
A suposta função social, que consistia em adensar a região central em torno dos chamados eixos de transporte (corredores de ônibus e linhas de metrô), com o objetivo de permitir que pessoas de menor renda morassem onde há melhor estrutura pública de transportes, ficou só na imaginação do ex-prefeito e seus acólitos emocionados. Na verdade, ocorreu até mesmo o contrário: pessoas de classe média ou média baixa, que viviam há décadas em bairros que antes eram tradicionais e razoavelmente baratos, foram obrigadas a migrar para bairros mais distantes, por conta da especulação que aumenta o custo de vida da região e descaracteriza o lugar onde antes moravam. Mercadinhos e lojas pequenas fecham, o bar que serve PF dá lugar a mais um boteco cenográfico pretensamente “carioca” e, num passe de mágica, sua rua está inundada com gente de colete de gominho, que toma canecas de Moscow Mule com espuma ou Gin Tônica na taça gigante.
Claro que logo vai aparecer algum fã do Haussmann de Centro Acadêmico para me chamar de Nimby (o acrônimo para Not in my backyard, usado para definir gente elitista que defende seu pedaço privilegiado com unhas e dentes). Mas basta uma voltinha por algum bairro central de São Paulo para entender o tamanho do buraco em que esse Plano Diretor enfiou a cidade: não democratizou o espaço público, destruiu bairros tradicionais, aumentou a distância entre a minoria que se encastela em bairros centrais cada vez mais homogêneos - ou seja, ricos - e a maioria que é empurrada para bairros mais distantes.
Um exemplo prático para o Haddadete que ainda insiste: no último ano, o aluguel em Pinheiros, um dos focos da especulação imobiliária gerada pelo plano diretor, subiu 16,9% e o bairro ultrapassou o Itaim como o terceiro metro quadrado mais caro para aluguel residencial em São Paulo. Ao mesmo tempo, há casos e mais casos de aluguéis comerciais que estavam por volta R$ 4.000 há pouco tempo e que passam para R$ 20.000 ou R$ 25.000. Comércios menores e tradicionais fecharam e o perfil comercial no bairro é cada vez mais elitizado. A saída da estação do metrô virou, na prática, a entrada de serviço para quem trabalha para os abastados moradores do bairro.
E nem falei dos preços de compra e venda de imóvel. Pinheiros já tem o metro quadrado mais caro de São Paulo desde 2023, quase o dobro da média da cidade.
O sinal fica verde para pedestres. Desviamos de uma bicicleta que passou no sinal fechado e atravessamos para o outro lado da Avenida Rebouças. Saímos oficialmente de Pinheiros, para entrar no Jardim Paulistano. Escolhemos correr nessa região, que é plana e com poucos carros e pessoas pelas ruas.
E repare bem: isso não é por acaso.
2.
As avenidas Rebouças, Faria Lima, Brasil e Europa delimitam a área que engloba o Jardim Paulistano e o seu gêmeo unido no nascimento, o Jardim Europa (ó aí a elegância discreta de paulistanos que se acham europeus da gema). Um quadrilátero de várias casas e bem poucos prédios baixos (no máximo de três andares), ruas sinuosas, muitas árvores e praças - e bem pouca gente.
Um oásis no meio de prédios altos, protegido da especulação imobiliária que toma conta dos bairros vizinhos, graças ao tombamento realizado em 1986 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo).
Opa, olha aí o Poder Público mobilizado por algo que beneficia a cidade, não?
Não?
🤔
Antes de discutirmos isso, gafanhoto, vamos falar dos bairros-jardim. Esse conceito é fruto da Revolução Industrial e da urbanização acelerada decorrente das mudanças socioeconômicas no Reino Unido, especialmente a partir do século XIX. Muitas cidades britânicas começaram a ter uma expansão em direção aos subúrbios, impulsionada por uma burguesia com dinheiro. Era gente que queria ficar longe dos centros caóticos poluídos e abarrotados de cortiços e pobres; mas que, ao mesmo tempo, não fazia parte da aristocracia. As Garden Cities eram bairros em meio à natureza, com poucas unidades familiares e próximas a vias de locomoção que permitiam fácil acesso às áreas industriais ou ao centro das cidades. Essa nova classe média pagava por casas amplas, ruas tranquilas e muito espaço verde.
Em 1919, a Companhia City (nome oficial: City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited) contratou os arquitetos-urbanistas Barry Parker e Raymond Unwin para criar o primeiro bairro-jardim de São Paulo, o Jardim América. Segundo a arquiteta e estudiosa Sarah Feldman, o projeto inspirava-se na cidade-jardim de Hampstead, no Reino Unido, e previa o mesmo conceito: moradias unifamiliares, equipamentos culturais e esportivos, um centro comercial compacto para o bairro.
Após idas e vindas e com vistas a maximizar o lucro, o Jardim América foi lançado somente com grandes lotes residenciais unifamiliares e nada dos outros features da inspiração britânica. Aparentemente, privilegiava-se mais a exclusividade do que a comodidade. Foi a fórmula seguida no Jardim Europa em 1921 e nos demais bairros-jardim, como o Paulistano, nos anos seguintes.
Num país (e especialmente numa cidade) em que privilégio, separação física e hierarquia são vistos como uma proteção natural contra classes mais baixas, o conceito original dos bairros-jardim foi adaptado para um modelo mais exclusivista. Se no original britânico havia uma preocupação central com qualidade de vida e contato com a natureza para uma classe média endinheirada, que visava sair de cidades superpovoadas e poluídas, no caso paulistano o atrativo principal era criar uma fortaleza em que os mais ricos poderiam se isolar o máximo possível do populacho. Tanto que os lançamentos atraíram não apenas o público-alvo da City, formado por executivos das novas empresas e estrangeiros expatriados, mas também muitos milionários que já abandonavam Campos Elíseos e outros bairros centrais da cidade que, até poucos anos antes, eram exclusivíssimos.
3.
Alternamos corrida e caminhada pelas ruas curvas do bairro. O traçado urbano foi pensado exatamente para ser sinuoso e cheio de curvas - uma forma de evitar que a região virasse passagem de automóveis. Originalmente, o projeto da City contava com uma parceria com o poder público para criar na região um centro comercial, parques com equipamentos de esporte e lazer, sanitários públicos e até mesmo a idéia, revolucionária para os anos 1920, de uma linha metrô que ligasse a região à Avenida Paulista e ao Centro.
Tudo foi limado do projeto após a constatação de que esses pontos poderiam atrair pessoas que não moravam no bairro; afinal, como você impede que um cidadão faça uso de bens públicos? Melhor não arriscar dar uma falange de serviços públicos e os serviçais logo quererem um dedo inteiro de democratização do espaço. Imagine só se os muitos vigias da região, aqueles que ocupam as guaritas que existem em praticamente cada esquina, resolvessem trazer suas famílias para um piquenique no dia de folga?
Passamos pelas ruas e encontramos apenas alguns carros estacionados, vigias entediados e um ou outro passeador de cachorro. Em cada rua, postes com câmeras de segurança que devem esquadrinhar toda a área ao redor, em cima de plaquinhas com os dizeres “vizinhança solidária”. Quase não há esquinas ortogonais no bairro, como as que existem em outras regiões da cidade. Rotatórias são bem mais comuns.
No projeto original para o Jardim Europa as esquinas são curvas e há um espaço livre, um pequeno jardim de mais ou menos 30 a 40 m², entre o muro residencial mais próximo e a rua. O objetivo era ter uma área reservada para o fluxo de pedestres e, ao mesmo tempo, garantir que um espaço mínimo em cada calçada estivesse sempre arborizado.
No universo paulistano (e brasileiro) em que tudo é permitido a quem faz as regras, muitas casas avançaram sobre esse pequeno jardim que deveria ser público - incluindo-se aí as casas de moradores famosos da região, como o ex-prefeito, ex-governador e ex-candidato a presidente Paulo Salim Maluf ou o ex-prefeito Reynaldo de Barros.
Reduzimos o ritmo ao comando do app de corrida, passamos a andar e cruzamos a rua em frente à Paróquia de São José do Jardim Europa, na rua Dinamarca. A igreja tem uma construção até que modesta e aparentemente não quer emular nenhum estilo passado. Tem um jeito de Igreja tradicional, quase ascética demais para a riqueza do bairro.
Dentro da igreja, há uma imagem de São Paulo (o santo, não o estado ou a cidade) que foi doação de Adhemar Pereira de Barros, interventor federal de 1938 a 1941, além de ter sido duas vezes governador e candidato a presidente. Era morador da região e frequentava a missa dominical. Anos depois, o diretor do Condephaat que foi responsável pelo tombamento da região, o advogado Modesto Carvalhosa, também frequentava a mesma igreja e morava na vizinhança - uma vez eu o reconheci na porta da igreja, por seu arcaico bigode branco de pontas bem enceradas e jaquetão bem cortado. Quase um prócer da República Velha.
Em 1986, o processo de tombamento pelo Condephaat foi concluído com as seguintes diretrizes: o traçado das ruas deveria ser preservado, assim como as árvores nativas e, especialmente, o status de Zona Exclusivamente Residencial (ZER), com lotes de determinado tamanho, em unidades unifamiliares. Mas, ao mesmo tempo, Carvalhosa modestamente incluiu uma inovação bem interessante e pouco divulgada no tombamento do bairro - o processo não englobava as residências. Um golpe de mestre que garantiu, ao mesmo tempo, a perpetuidade de tudo o que faz o bairro ser desejável e caro, mas sem qualquer obstáculo à constante destruição e reconstrução das propriedades nos bairros-jardim. Com o passar dos anos, as residências originais foram substituídas por outras ainda mais sofisticadas e um intenso comércio imobiliário se fez no bairro, mas sem que houvesse qualquer risco ao status diferenciado da região.
4.
Estamos no ano 2024 depois de Cristo. Toda a São Paulo foi ocupada…toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis paulistanos ainda resiste ao invasor.
Protegidos por avenidas que dão vazão ao trânsito intenso, em um bairro sem paradas de transporte público ou atalhos conhecidos que façam motoristas buscarem caminhos alternativos para economizar tempo no trânsito, os moradores dos Jardins Europa e Paulistano viram a cidade mudar nas regiões adjacentes, mas continuaram com seu pequeno feudo residencial. Vários governos municipais e estaduais que vieram depois de 1986 não mexeram no tombamento decretado pelo Condephaat.
A revisão do Plano Diretor, realizada entre 2023 e 2024, ameaçou mudar esse estado de coisas. A ofensiva das incorporadoras e construtoras fez aumentar ainda mais a leniência do Plano Diretor com a especulação imobiliária e, pela primeira vez em décadas, mudanças poderiam ser introduzidas no status dos bairros-jardim. A mais significativa era a alteração do regime dos lotes: passariam de unifamiliares para um modelo que permitiria construir múltiplas residências, em lotes fracionados - o que poderia dar origem a condomínios horizontais, com várias casas no espaço de alguma antiga mansão. Ao mesmo tempo, a entrada de um novo grupo político no governo estadual também trouxe outro risco: recuperou-se o plano para uma nova linha do Metrô, que passaria por baixo da região e teria, inclusive, uma estação bem no centro do Jardim Europa.
Foi o suficiente para o início de uma campanha com faixas em todo o bairro. “Vereadores, não mudem o que está dando certo”, era o mote da campanha.
O conceito de “dar certo” não poderia ser mais Brasil: pode-se até dizer que não é o caso de mudar algo que está dando certo há 524 anos, não? Quem sabe, em 1888 alguém pensou nessa frase também.
A mobilização deu resultado em todas as instâncias: a revisão do Plano Diretor foi sancionada pelo prefeito desconhecido com vetos a qualquer mudança na legislação referente aos bairros-jardim; por sua vez, em âmbito estadual, o projeto do Metrô sofreu ajustes e somente passará por baixo dos bairros, com estações apenas nas avenidas que delimitam a região, longe do miolo em que se concentram casas e praças.
Nada de novo na capital bandeirante. Dada a concentração do PIB paulistano nos bairros que seriam afetados, não espanta que haja força política suficiente para que as demandas sejam atendidas rapidamente, ao passo que outros bairros continuam a ser destruídos pela guerra sem quartel que a especulação imobiliária empreende contra a cidade.
Seguimos adiante, novamente em ritmo acelerado. Passamos em frente à casa do ex-prefeito e ex-governador João Dória. As viaturas policiais que ficavam permanentemente em frente à residência, como proteção ao então mandatário do estado, não estão mais ali - mesmo após Dória ter deixado o governo, a escolta continuou por algum tempo, cortesia de seu antigo vice. Também sumiram as bandeiras do Brasil e do Estado de São Paulo, que antes decoravam o imaculado muro branco da residência desse ex-prefeito e ex-governador que agora está no ostracismo e, talvez, sem muito fervor patriótico.
Começamos a voltar pelas ruas do bairro. Algumas quadras no sentido inverso e chegamos até a Avenida Rebouças, além das fronteiras dos bairros-jardim e de volta aos tapumes que cobrem quarteirões inteiros. As árvores que são abundantes nos bairros-jardim estão quase ausentes das ruas que ficam para cá da Rebouças: os empreendimentos imobiliários cresceram no bairro no mesmo ritmo em que desapareceram várias árvores, retiradas com a conivência da prefeitura. Andamos em ritmo lento pela Rua dos Pinheiros, sem conseguir lembrar muito bem o que existia antes nesses terrenos em que muita coisa já veio abaixo.
5.
Há alguns anos Pinheiros era classe média, até mesmo classe média baixa em algumas áreas. Durante um bom tempo foi uma região um pouco esquecida, meio que perdida entre Vila Madalena (bairro boêmio e mais classe média alta), Alto de Pinheiros (residencial e classe média alta/classe alta) e Jardins (residencial, comercial sofisticado e classe alta). Era o bairro de estudantes, de famílias remediadas, de moradores que estavam lá há décadas e ainda lembravam de quando ainda não havia prédios altos ou quando o trânsito ainda não era tão intenso na Avenida Rebouças. Não raro, o sapateiro, o barbeiro ou o dono do mercado moravam no apartamento em cima de seus comércios ou, no máximo, em alguma rua próxima.
O que se pode definir como Pinheiros é a região que fica mais ou menos entre as Avenidas Rebouças e Dr. Arnaldo e a Marginal do Rio Pinheiros, extendendo-se até a rua Aspicuelta - no Google Maps é assim que aparece, vai lá para ver.
Em Pinheiros, as residências unifamiliares praticamente já se foram há muito tempo e os antigos prédios residenciais de poucos andares estão na rota da extinção. O comércio mudou bastante e mantém-se como era apenas em alguns pontos da Teodoro Sampaio, a principal rua comercial do bairro.
Há uma resistência organizada que, a despeito de muitas derrotas, ainda tenta evitar a total descaracterização do bairro e há anos busca o tombamento de construções históricas de Pinheiros, sem sucesso. Mas não é páreo para a bancada legislativa que revisa o Plano Diretor sem consulta popular, ou para a prefeitura que é totalmente ausente e cúmplice da destruição programada por construtoras e incorporadoras.
Do outro lado da Rebouças também há resistência, no feudo que não quer se transformar no que Pinheiros e outros bairros passaram a ser. Mas talvez, no futuro, nem a influência política dos moradores que circulam na elite paulistana seja páreo para o balcão de negócios da São Paulo que não pode parar. Em Pinheiros ainda há luta; mas depois de tanto tempo a batalha parece perdida e o bairro tem a cara do que sobrou de Mariupol depois que os russos passaram.
O tempo de corrida marcado pelo app termina exatamente na esquina da nossa casa, na Rua dos Pinheiros. É sábado e estamos numa esquina que ainda não mudou muito; em cada lado da rua, vemos bares tradicionais que estão ali desde sempre. Ao lado, uma banca de jornais que ficou sem função com o colapso do mercado editorial e agora funciona como bar e reúne moradores da região. O antigo restaurante mineiro, que esteve por décadas na casa em frente à banca, fechou há algum tempo. À boca pequena comenta-se que o proprietário, de olho grande nos novos aluguéis cobrados no bairro, botou a mineirada para correr dali e havia até fechado negócio com um bar de playboy. Isso antes da pandemia, que deve ter feito os Faria Limers recuarem do contrato. Até hoje não se encontrou um novo inquilino - e o proprietário se recusa a baixar o preço. A casa se deteriora, fechada com tapumes, como é comum num bairro em que há cada vez menos portas abertas para a rua, mais imóveis vazios à espera do preço certo e cada vez mais turistas e visitantes atraídos por lojas e restaurantes recém-abertos ou por hospedagens em AirBnB perto do metrô e dos bairros centrais.
Olhamos para as mesas lotadas na calçada do tradicional bar da esquina. Quase todos são moradores locais que estão ali para o almoço. São casais, alguns grupos de amigos, até gente que está no batente no sábado e parou para almoçar. Um pedreiro de alguma obra da região pergunta no balcão se vendem cigarro e se tem cerveja em lata - o balconista diz que não vende cigarro e que só tem long neck ou garrafa de 600 ml.
O garçom monta uma mesa para nós na beira da calçada, quase na rua, e pedimos uma cerveja de 600 ml. Incoerente com os quilômetros corridos pouco tempo antes? Talvez. Mas um bar meio qualquer coisa sempre foi muito a cara do bairro e temos que aproveitar enquanto existe - quem pode dizer quando essa esquina toda vai desaparecer para dar lugar a um prédio, ou então algum restaurante moderno vai pagar quatro ou cinco vezes a mais em relação ao aluguel atual para ocupar o ponto em que hoje existe esse bar?
João Antônio, o maior cronista das noites paulistanas e dos bairros tradicionais, dedica um capítulo inteiro a Pinheiros em sua história mais conhecida, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). Fala dos bares da Teodoro Sampaio, do Largo, do Mercado, das ruas de comércio popular, dos restaurantes e lanchonetes que servem PF para quem trabalha na região, da Pastelaria Chinesa que ficava ao lado do terminal de ônibus e funcionava dia e noite, dos expressos e dos ônibus de romeiros que paravam por ali, dos pequenos golpistas da noite do bairro, dos japoneses que trabalhavam no Mercado de Pinheiros e que, segundo ele, “(…) com seus modos de falar sorrindo e meneando a cabeça, eram os donos do bairro”. É uma Pinheiros que ainda existe, mesmo que em meio às torres da especulação imobiliária. Talvez não por muito tempo - e por isso aproveitamos cada oportunidade de estar nesse bairro que desaparece rapidamente.
“Pinheiros dormia de todo; nem gente, nem carros, na rua Teodoro Sampaio nenhum bonde passava. Em pensamento, Malagueta, Perus e Bacanaço xingavam Pinheiros (…)
Tinham pressa, mas iam lentos e até chutavam coisas do caminho. Bar fechado, bar fechado e aquele mais adiante também”._Malagueta, Perus e Bacanaço, João Antônio, 1963