A calma violência do privilégio
Nos melhores filmes do ano, nada é mais impactante do que a vida real.
Se ainda não assina, clique no botão abaixo para receber um texto novo toda semana. Se já é assinante, você pode mudar para a modalidade paga.
Intro.
Já falei aqui antes: a Mostra de Cinema de São Paulo, em sua 48ª edição em 2024, é sempre um sopro de civilidade. Com ótima curadoria, para mim vale um curso inteiro de humanidades.
Organizo minha agenda sempre para conseguir assistir algo e já tive bons momentos nas salas de cinema que mais gosto na cidade. Vi muita coisa que foi importante demais para construir minha visão de mundo.
Até já maratonei série na Mostra, coisa que nunca faço - há uns anos, assisti de uma tacada só o Decálogo (1989), de Krzysztof Kieślowski, 10 episódios de cerca de uma hora cada um exibidos na sequência, num único dia. Foi na sala do Cinesesc, indo das poltronas para o bar, (para quem não é de São Paulo, tem um bar com ótima visão, dentro da sala), tomando vinho, enquanto uma das tempestades mais fortes dos últimos anos caía na cidade.
Descobri muito filme bom na Mostra e continua sendo o momento em que mais tenho contato com outras visões e perspectivas, em um espaço de tempo tão concentrado.
A regra é clara: escolher só o que você não pode assistir em outros momentos, algo que possivelmente você nunca mais terá a chance de ver - se bem que, em alguns casos, até estreia em circuito ou, atualmente, vai para streaming. Nada de filmes de autores mega conhecidos, como Almodóvar ou Wim Wenders, por exemplo - esses estreiam logo depois e não vale gastar tempo na Mostra para isso. A regra vale para abrir espaço para cópias restauradas de algo que ainda não vi ou até mesmo que já vi, mas não no cinema ou em cópia boa; para obras de cineastas iniciantes; para filmes de países fora do radar, como eram Irã no começo dos anos 1990, Coreia do Sul na segunda metade da década ou a Argentina no começo dos 2000; para documentários que, com raras exceções, são ignorados no mercado.
É cada vez mais um programa de nicho. O cinema como o conhecemos durante o século XX tem mudado e, especialmente, tem mudado também a relação do público com o cinema. Até mesmo para mim; antes, era bem mais comum sair de casa para ir ao cinema e ver algum lançamento. Hoje, acabo mesmo entrando nessas salas escuras quando há alguma mostra, como a In-Edit, ótima oportunidade de ver documentários musicais, o Tudo é verdade, de documentários, o Festival Internacional de Curtas e, finalmente, a Mostra de Cinema de São Paulo.
Em 2024, como já é tradição, organizei meus horários para conseguir ver alguns filmes. Tradição que me traz uma sensação boa de conhecer, descobrir e refletir, ao mesmo tempo em que me divirto e me emociono. E vi grandes filmes.
E, aproveitando que estamos iniciando o último mês do ano, nada melhor como gancho para falar daquela nossa tradição por aqui nesse Locked Groove: os melhores do ano, na minha visão idiossincrática e completamente sem compromisso com o que se vê por aí na imprensa hereditária ou nas redes sociais. Então, pelo terceiro ano consecutivo e contando, vêm aí:
Os melhores filmes do ano.
A regra de não assistir na Mostra a filmes de diretores estabelecidos, que fatalmente acabam no circuito comercial, me pregou uma peça em 2023. Só fui assistir este ano a Dias Perfeitos (2023), de Wim Wenders. E, para falar a verdade, não recebi com muito entusiasmo a notícia de que um filme de Wenders estaria na Mostra de 2023. Deixei para ver depois, conscientemente.
Minha última interação com uma obra de Wenders na Mostra havia sido uma masterclass em 2010, em que ele falou dos filmes que marcaram sua vida e o levaram ao cinema, logo depois de apresentar a cópia restaurada de Asas do Desejo, seu filme de 1987. Depois dessa época, eu praticamente havia desistido do alemão. Seus documentários - sobre Pina Bausch, Buena Vista Social Club, Anselm Kiefer - eram bem mais interessantes do que sua obra de ficção recente, que há bastante tempo parecia cansada e repetitiva. Não era um problema: Wim Wenders tem grande folha de bons serviços prestados e já está garantido como um dos maiores autores do Cinema.
Dias Perfeitos é surpreendente. Traz um frescor para a obra de Wenders e retoma temas caros ao cinema dele - sua veneração por Ozu, sua fascinação pelo Japão, a observação do cotidiano, o personagem outsider e aparentemente solitário (mas humanista), os pequenos momentos que compõem a beleza da vida real.
A sinopse é o que menos importa e é impossível dar spoiler do filme. O protagonista Hirayama (Koji Yakusho) trabalha como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Não é por acaso. A humildade de uma tarefa como essa tem muito de espiritual - o Samu, no Zen-Budismo, prega que trabalhos físicos de manutenção cotidiana para uma comunidade, com zelo, intenção e disciplina, são uma oportunidade de meditação, humildade e prática espiritual. A repetição da rotina de Hirayama - todo dia ele faz sempre tudo igual - é uma forma de Samu que conduz engenhosamente a narrativa, num filme em que nada e tudo acontecem. Hirayama pouco fala e sua interpretação é muito mais pelo olhar e pelas reações e silêncios. É um filme emocional, mas que não subestima o espectador.
Wenders criou Dias Perfeitos a partir do convite para dirigir um documentário sobre o The Tokyo Toilet Project, que em 2020 reuniu arquitetos do mundo todo para criar banheiros públicos diferentes em Tóquio. Wenders usou a ideia para um filme de ficção. Depois de anos de bons documentários, mas com filmes de ficção fracos, a reconexão de Wenders com a vida real cotidiana trouxe um fôlego novo para seu cinema ficcional.
Parece ser uma tendência, inclusive, dos filmes que mais gostei na Mostra - o caráter documental como um fio condutor do cinema.
A Mostra permite descobrir muita coisa de forma quase instintiva. Não leio indicações de jornalistas - mesmo antes de o jornalismo cultural ter implodido com a ascensão das redes sociais, eu já preferia ir pelo guia da Mostra e descobrir filmes por conta própria. Claro que alguns parâmetros básicos, como seleções e premiações em outros festivais, ajudam muito.
Entre os bons filmes de ficção de 2024, vi na Mostra Vermiglio, de Maura Delpero, e Os Malditos, de Roberto Minervini. Ambos filmes históricos - o primeiro se passa no norte da Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, o outro durante a Guerra de Secessão dos EUA, em 1862. Ao mesmo tempo, ambos com um tom documental que é bem interessante. Os diretores (italianos, apesar de Minervini ser radicado nos EUA há anos) vieram do cinema de não-ficção e isso aparece bem nos dois filmes.
Vermiglio tem um olhar muito atento para os detalhes de uma pequena cidade italiana em 1944-1945, cheia de crianças, mulheres e dos homens mais velhos que não foram para o front. Dois soldados desertores do exército fascista italiano estão escondidos - um deles, parente da família protagonista do filme.
O filme fala da guerra obliquamente, sem cenas de batalha ou qualquer tipo de contexto a não ser o cotidiano da pequena vila. Poderia ser em qualquer época e trata de temas universais: machismo, emancipação feminina, família, conservadorismo, religião - e fascismo, tanto o político quanto o que se mistura ao cotidiano.
Do outro lado, Os Malditos tem um registro parecido em termos de sutileza e minimalismo. Em 1862, um destacamento do Exército da União marcha pelas planícies vazias do Oeste, em uma missão de cartografia e exploração. As cenas do cotidiano, mais uma vez, são registradas com olhar atento: as vigílias intermináveis, as montagens de acampamentos, as patrulhas, os jogos e conversas no tempo livre. O frio intenso a que os soldados são expostos é quase palpável. A sujeira nas camisas ou os tecidos puídos são mostrados nos mínimos detalhes, enquanto os soldados conversam de forma natural, como se um documentarista ‘Fly on the wall’ estilo Frederick Wiseman registrasse as cenas, sem intervenção. Os nomes dos personagens são os mesmos dos atores, como descobrimos nos créditos finais.
É um destacamento militar perdido, abandonado em uma região desolada, imerso em uma constante espera por algo que pode nunca acontecer - seja um encontro com forças inimigas ou o fim da jornada - e que só é quebrada por uma cena de batalha filmada no entardecer, com incrível apuro técnico. Os únicos sinais dos inimigos são o barulho dos cascos dos cavalos ou a chama alarajada de disparos feitos à distância. Soldados tropeçam, disparam para algum ponto em que sequer conseguem enxergar alguém, ficam sem fôlego - mais vida real, impossível.
São filmes que contam muito sem que seja preciso jogar na cara do espectador o que acontece. São mais sugeridos do que explícitos em seu propósito e ambos permitem muitas interpretações, comoVermiglio com sua história da submissão a um modelo familiar arcaico e opressor, e Os Malditos com a crônica de uma estrutura militar desumanizadora que trata soldados como peças de uma engrenagem. De qualquer forma, ambos deixam ao espectador a tarefa de pensar e entender o que viu, bem longe da moda atual de explicar tudo e não permitir espaço algum para reflexão ou interpretação.
Gosto de ficção e é o que mais assisto. Ao mesmo tempo, também tenho um carinho especial por documentários. Mas nada de oncinha pintada, zebrinha listrada ou coelhinho peludo, de documentários tipo Animal Planet ou National Geographic. Prefiro os que têm uma perspectiva que me ajude a entender o estado das coisas no mundo atual - que tratem de questões políticas, econômicas, sociais.
Mas que fique claro: não sou daqueles que dormem em cama de campanha, olham para tudo com indignação e passam raiva com a “alienação” dos outros. Relaxa, militante, é o que um amigo sempre diz - nem tudo precisa passar pelo filtro da consciência e do combate. Não aceito filme, música ou livro meia-boca só porque defende uma boa causa. Boas intenções apenas não levam a grandes obras de arte mas, como se fala por aí, podem pavimentar o caminho para o inferno, especialmente com a mão pesada de quem se acha muito esperto e profundo (estou olhando para você, Padilha). Mas há um fato incontestável: uma boa criação sempre vai falar do que nos importa.
Mas não é porque é documentário que deve ser totalmente desprovido de brilho criativo ou deve ser objetivo e burocrático. Grandes histórias podem ser bem contadas e roteiro, edição e direção significam muito para o resultado final. Fazem um bom tema ser transformado em um grande filme. Os dois melhores filmes que vi na Mostra em 2024 são documentários que provam essa tese: Ernest Cole: Lost and Found, de Raoul Peck, e No Other Land, de um coletivo de cineastas palestinos e israelenses.
Raoul Peck, documentarista haitiano, é velho conhecido de muitos que talvez não liguem o nome à obra: Peck tem filmes tanto em ficção quanto, principalmente, não-ficção, e foi o diretor de I Am Not Your Negro, documentário de sucesso de crítica e público sobre o escritor afro-americano James Baldwin.
Em Lost and Found, Peck recupera a história de Ernest Cole, fotógrafo que nasceu na África do Sul pré-Apartheid, em 1940. Sim, o Apartheid é relativamente recente na história; foi oficialmente implementando em 1948, com a vitória do National Party, de extrema-direita. O regime era baseado em separação racista por meio de leis segregatórias, não muito diferentes das chamadas Jim Crow Laws do sul dos Estados Unidos durante os séculos XIX e XX. A subjugação da população nativa pela minoria branca, sejam britânicos ou Afrikaners (os descendentes dos boêres, colonos de origem holandesa ou alemã que migraram para a África no século XVII), durou até 1994 e estabelecia regras rígidas de separação física, restrições à circulação, ao trabalho e ao direito de propriedade para a maioria nativa. As leis incluíam sistemas separados por raça para previdência, educação e saúde. Foram estabelecidas categorias raciais distintas perante a lei: bantus (a maioria negra nativa), coloured (mestiços em geral) e brancos, todos com diferentes níveis de direitos concedidos pelo Estado. Adivinha qual delas tinha direitos universais? 🤔
Cole conseguiu entrar na categoria coloured - o que o permitiu trabalhar com fotógrafos sul-africanos brancos e aprender o ofício, algo que seria totalmente vedado a um bantu. Com essa formação, Cole passou a documentar seu cotidiano num país em que seu povo era segregado, subjugado e cruelmente tratado como subalterno pela minoria branca. Suas fotografias, com um olhar preciso, foram compiladas em um livro, House of Bondage, de 1967.
"Sim, a África do Sul é o meu país, mas também é o meu inferno. Durante os primeiros 26 anos da minha vida, fui um dos 13,5 milhões de negros que vivem (ou deveria dizer 'existem'?) sob um sistema que lhes retira todos os direitos como seres humanos e os usa como 'coisas' para realizar o trabalho braçal para cerca de 3,5 milhões de brancos que controlam o governo, a economia, o exército e a polícia da quinta nação mais rica do mundo."
_Ernest Cole, House of Bondage (1967)
Além das cenas de desumanização, violência e repressão do sistema policial do Apartheid, Cole mostra também um lado pouco explorado do regime segregacionista. O próprio Cole traz a boa definição “a calma violência do privilégio" para suas imagens: Cole fotografa os ricos e aparentemente pacíficos subúrbios brancos de Johannesburgo e Pretória, em que os empregados são todos bantus negros a serviço de seus senhores Afrikaners. A opressão não é tão explícita quanto se espera; na maior parte dos casos, os detalhes é que demonstram a onipresença da segregação.
Cole mostra cenas que não estariam deslocadas no Brasil: empregadas domésticas que passeiam sorridentes com bebês brancos, os diminutos quartos de empregadas das ricas casas dos Afrikaners, policiais negros patrulhando ruas e interpelando outros negros, exigindo a apresentação do passaporte que deveria ser carregado todo o tempo, para provar que o bantu estava autorizado a circular por aquela região exclusiva. (Daqui da experiência brasileira, não dá para deixar de pensar naquela história famosa de ter que carregar carteira de trabalho para provar que é ‘trabalhador’ e não malandro).
Cole conseguiu publicar seu livro fora da África do Sul, levando na bagagem os negativos para impressão no exterior. O livro foi banido em seu país e Cole e sua família, perseguidos. Em 1968, exilou-se definitivamente nos EUA durante uma viagem. Nunca mais voltou à terra natal. O regime racista o tornou apátrida ao cassar seu passaporte e sua cidadania. Exilado, Cole continuou a denunciar a situação da África do Sul segregacionista, enquanto vivia no novo país.
Sua fama o fez conseguir trabalhos de fotojornalismo nos EUA, que estavam em crise social durante a luta pelos Direitos Civis dos afro-americanos. A ironia: os movimentos sociais tentavam derrubar as leis segregacionistas estilo Jim Crow, que inspiraram as do Apartheid e haviam sido implementadas muito tempo antes, desde a Guerra de Secessão, terminada em 1865. Cole viajou pelo Sul dos EUA e chegou a dizer que sentiu-se mais ameaçado no Alabama do que havia se sentido na África do Sul.
No início dos anos 1970, as conquistas dos direitos civis na América se consolidavam, mesmo que aos trancos e barrancos, e Cole voltou sua câmera para a Nova York em que vivia, retratando seus excluídos sociais - pouco importando a raça. Começou a ser colocado de lado. Uma coisa era mostrar a segregação racial no sul dos EUA pela perspectiva de um fotógrafo que experimentara o Apartheid. Outra, bem diferente, era um estrangeiro que esfregava na cara de todos a exclusão engendrada pelo capitalismo. Novos convites para trabalho rarearam e Cole começou a trabalhar no exterior também, ao mesmo tempo em que lutava contra uma depressão profunda e vícios em drogas e álcool.
Cole foi parar nas ruas, perdeu suas câmeras e seus negativos espalharam-se pelo mundo. Foi esquecido por muitos que antes o exaltavam e chegou a viver em albergues e na rua. Ficou anos sem sequer pegar numa câmera.
Raoul Peck conta tudo isso e recupera a história de vida e a importância de Cole, que morreu aos 49 anos. Segregado na África do Sul racista e ignorado na Nova York desigual e racista onde viveu, Cole tinha uma pulsão por expor as desigualdades que via no mundo - tanto raciais quanto sociais. Para ele, as duas vertentes não podiam ser indissociáveis.
Cole nunca pôde retornar à África do Sul e não viu o fim do Apartheid. Apátrida, viveu os últimos 20 anos em uma terra que não era a sua - mas talvez já fosse assim que se sentisse em sua terra natal, oprimida por um regime segregacionista que desumanizava e tratava seu povo como propriedade.
O outro documentário que me impactou muito na Mostra é No Other Land, que se passa em outra época e lugar, mas trata de temas assustadoramente parecidos com a experiência de Cole. Inscrito no Festival de Berlim como uma produção conjunta de Palestina e Noruega, ganhou o prêmio de melhor documentário no festival. A premiação foi recebida por Yuval Abraham e Basel Adra, respectivamente israelense e palestino, integrantes do coletivo judeu-palestino que filmou, editou e dirigiu o documentário.
O filme mostra a luta da comunidade palestina de Masafer Yatta, na Cisjordânia ocupada, que resiste ao plano de realocação forçada dos militares israelenses (as IDF). A região foi definida unilateralmente como campo de treinamento militar há anos e a comunidade luta na Suprema Corte israelense pelo direito de continuar em suas terras, ao mesmo tempo em que enfrentam a destruição ilegal iniciada sem ordem judicial pelas IDF.
O filme começa com o encontro entre Yuval e Basel, mas o palestino já havia começado a filmar as cenas de conflito com o Exército israelense há mais tempo, para documentar o que acontecia. Baseado em imagens filmadas pelos próprios habitantes e pelo coletivo documentarista entre 2019 e 2023, No Other Land mostra uma luta que se arrasta há décadas e denuncia a destruição das vilas pelo exército israelense e a situação de aprisionamento em que vivem os palestinos na região ocupada.
A relação com o Apartheid denunciado por Ernest Cole é assombrosa; em trechos do documentário sobre Cole, aparecem as fotos que o sul-africano fez das realocações forçadas de bantus, expulsos de suas propriedades para darem lugar a condomínios e bairros exclusivamente brancos. No filme de Abraham e Adra, a destruição de vilas palestinas é seguida, anos depois, por construções de assentamentos judaicos nos mesmos lugares onde, em teoria, campos de treinamento militar seriam criados (e eram a suposta razão para a realocação forçada da população palestina).
Yuval, judeu israelense, fez um discurso forte em Berlim, denunciando a situação de Apartheid na Cisjordânia ocupada e pedindo o fim da segregação. Defendeu um cessar-fogo imediato em Gaza e a retomada do plano de dois Estados. Causou forte reação: atraiu críticas duras das mídias alemã e israelense e até mesmo o embaixador de Israel em Berlim o chamou de antissemita. A amarga ironia não passou despercebida a Yuval Abraham: estava em Berlim, a poucas centenas de quilômetros do campo de concentração onde nasceu sua avó materna, durante a Segunda Guerra Mundial, e também próximo aos campos de onde seu avô foi o único da família paterna a sair vivo.
Yuval denunciou que milícias de colonos extremistas rondaram a casa de sua família e que recebeu ameaças de morte nas redes sociais. Mas ressaltou que a situação de Basel era ainda pior, uma vez que ele, Yuval, pelo menos tinha o privilégio da livre circulação e plenos direitos, como cidadão judeu israelense. Basel, por sua vez, é obrigado a usar um carro com placa verde (exclusiva para palestinos, com restrição de deslocamento, enquanto judeus usam placas amarelas sem restrições) e a parar em todos os postos de fronteira para apresentar uma carteira de identidade de capa verde, equivalente ao passaporte sul-africano do Apartheid que Ernest Cole mostrava em suas fotos. Após o prêmio, Basel Adra voltou ao ‘gueto’ de Masafer Yatta, à espera das próximas escavadeiras que metodicamente começariam a derrubar mais casas palestinas.
Não há previsão de distribuição do filme em circuito comercial, a despeito de ter ganhado o prêmio máximo de documentário no festival de Berlim. Nos EUA, nenhum distribuidor se interessou sequer em comprar os direitos de streaming.
“Comecei a filmar quando começamos a acabar"
_Basel Adra, no começo de No Other Land, mostrando cenas das escavadeiras israelenses derrubando casas palestinas em Masafer Yatta.
“O interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão, é o gendarme ou o soldado.”
_Frantz Fanon, Os Condenados da Terra (1961)